O histórico tricampeonato de Gustavo Kuerten em Roland Garros completa 20 anos nesta quinta-feira. Em 10 de junho de 2001, Guga entrava na quadra Philippe Chatrier para disputar sua terceira final de Grand Slam. Então número 1 do mundo, o brasileiro era favorito contra o espanhol Alex Corretja. A partida começou melhor para o franco-atirador, que ocupava o 13º lugar do ranking e venceu o primeiro set, mas Guga conseguiria a virada e venceu por 6/7 (3-7), 7/5, 6/2 e 6/0 em 3h12 de disputa. O tricampeão comemorou a conquista desenhando um coração na quadra de saibro, repetindo um gesto que já havia feito após a vitória sobre o norte-americano Michael Russell nas oitavas.
Campeão pela primeira vez em 1997, quando tinha apenas 20 anos e ocupava o 66º lugar do ranking, Guga também triunfou em Paris no ano 2000. Com seus três títulos, ele se juntava aos também tricampeões Ivan Lendl e Mats Wilander e, na Era Aberta, ficava atrás apenas do hexacampeão Bjorn Borg. Anos depois, Rafael Nadal estabeleceria um incrível domínio no saibro, com suas atuais 13 conquistas na capital francesa.
"O que eu consegui sentir naquele momento foi a maior emoção que já vivi na minha vida. Acho que ica ali na balança com o dia que eu entrei no Maracanã com a tocha olímpica em 2016. Na hora daquela consagração, parecia que eu grudei todas as pessoas ali comigo. Era como se todo mundo estivesse deitado na quadra", disse Guga, durante entrevista coletiva na última terça-feira. "Os títulos, os troféus, e os prêmios em dinheiro transformam a vida da gente, mas o que fica é a lembrança e a emoção. Daqui a 50 anos, se tivermos a oportunidade de conversar, a gente vai lembrar. Por que é inesquecível ganhar Roland Garros? É porque é muito emocionante. E quando eu faço um coração dentro da quadra, multiplica por 10 essa emoção".
Na preparação para o Grand Slam francês, Guga foi campeão em Monte Carlo e finalista em Roma, mas não passou da primeira rodada em Hamburgo. Dessa forma, sua campanha no saibro europeu foi de 18 vitórias em 20 jogos, chegando a vencer 11 partidas seguidas no piso. Ele liderou o ranking da ATP durante quase toda a temporada de 2001. No início do ano também venceu os torneios de Buenos Aires e Acapulco. Guga já havia enfrentado e vencido Corretja em sets diretos naquele ano, pelas quartas de final em Roma, e foi superado pelo também espanhol Juan Carlos Ferrero na decisão do torneio na capital italiana.
Dois argentinos no começo do torneio e imprevisível marroquino
Os dois primeiros jogos de Gustavo Kuerten naquela vitoriosa campanha em Paris foram contra adversários argentinos. Logo na estreia, ele teve a missão de enfrentar Guillermo Coria, então número 25 do mundo e a quem havia superado na semifinal de Monte Carlo. Guga confirmou o favoritismo e superou um teste contra o argentino por 6/1, 7/5 e 6/4. Já na fase seguinte, passou pelo 74º colocado Agustin Calleri por triplo 6/4.
Veio então a partida contra o marroquino Karim Alami, 109º do mundo, e dono de um estilo incomum. Em depoimento a Luis Colombini para sua autobiografia Guga, um brasileiro (Sextante, 2014, p. 304), o tricampeão de Roland Garros deu detalhes sobre as dificuldades para encarar um rival tão imprevisível. "O marroquino tinha um estilo de jogo que me dificultava, ficando naquele negócio de sacar e correr para a rede ou então se plantar no fundo, inventando moda a cada ponto. Eu jogava como franco favorito, tinha a obrigação de ganhar. O adversário, por sua vez, dava a vida. Se vencesse, seria a consagração". Guga precisou de quatro sets e 3h11 para vencer por 6/3, 6/7 (3-7), 7/6 (7-5) e 6/2.
Virada contra Russell nas oitavas e o primeiro coração
Depois de superar as três primeiras rodadas, Guga teve um dos jogos mais marcantes da carreira nas oitavas de final em Paris. Em 3 de junho de 2001, ele venceu uma batalha de cinco sets contra o norte-americano Michael Russell. O brasileiro salvou um match-point na vitória por 3/6, 4/6, 7/6 (7-3), 6/3 e 6/1 em 3h25 de disputa. O resultado deu a confiança necessária para conquistar a competição mais uma vez.
"O match-point, eu tenho certeza que foi o meu pai lá de cima. Até a torcida já estava fazendo 'Aaaahhh...', mas o pai soprou e a bola foi para fora", contou um emocionado tricampeão, ao se lembrar do pai, Aldo Kuerten, que faleceu em 1985, quando Guga tinha apenas oito anos. "O cara estava jogando muito, estraçalhando. E no match-point, quando eu já estava totalmente perdido, ele joga nota 9, e eu 9,5, mas tiro 10. Então, ali, é o primeiro momento que eu jogo com grande felicidade em muito tempo. O mundo sorri muitas vezes para a gente, ele traz essas recompensas".
"Eu cheguei lá para ser campeão. Se eu perco do Michael Russell, todo mundo ia falar: 'O que é isso? Não dá para acreditar!'. Se eu perdesse numa final ou semifinal, a sensação seria: 'Tudo bem acontece'. E mesmo assim, eu ia ficar chateado, porque fui para lá para ser campeão".
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O ídolo do tênis brasileiro também falou sobre a motivação para desenhar o coração. "Eu fiquei intrigado, porque achava que tinha demorado mais para eu ter a ideia. Mas, não. Eu já saio da rede pronto para fazer. Foi muito rápido. Isso é divino, é espiritual. E eu só fui ter uma clareza do impacto daquela cena uns dez anos atrás. Na hora só foi uma emoção, a consagração por transbordar todos os meus sentimentos", explicou aos jornalistas.
Já em seu livro, ele afirmou que precisava encontrar uma forma de transmitir o que sentia para os torcedores que tanto o apoiaram naquele dia e que o gesto deu-lhe muita força para as fases finais. "Nada se comparava em emoção àquela catarse. Duas horas atrás eu era dado como morto. Mas agora que os céus haviam me dado uma segunda vida, ninguém mais me tirava o título. No momento que eu me levantei, coberto de saibro, tinha plena certeza de que seria campeão mais uma vez em Roland Garros".
Coincidências entre os títulos em Paris
Em comum nas três conquistas de Guga em Paris estão as vitórias sobre o russo Yevgeny Kafelnikov nas quartas de final. Além disso, ele venceu o espanhol Juan Carlos Ferrero nas semifinais dos dois últimos títulos. Diante de Kafelnikov, então número 7 do mundo, Guga venceu com parciais de 6/1, 3/6, 7/6 (7-3) e 6/4. Já na semi contra Ferrero, quarto colocado na época, a vitória veio em sets diretos, com parciais de 6/4, 6/4 e 6/3 em partida com 2h10 de duração.
"Contra o Kafelnikov, estava tão embalado e comprometido que esse acabou sendo o jogo menos complicado que eu tive com ele, apesar de o russo vencer o segundo set e me dar trabalho no terceiro. No final, ganhei a partida por 3 a 1 e o Kafelnikov faria um dos elogios mais belos que eu já recebi. Numa entrevista, ele me descreveu como o 'Picasso das quadras'", afirmou Guga em seu livro.
Já sobre o confronto da semifinal, o brasileiro teve que lidar com condições bastante desafiadoras. Com a chuva, a quadra e a bola ficaram mais pesadas, mas Guga apostou em um jogo agressivo. "Eu espancava a bola com vontade. Tudo o que eu fazia dava certo. Na base da pancada, ganhei o primeiro set na tranquilidade. No segundo, vendo que eu não ia segurar o braço, ele também passou a bater mais forte. Mas quanto mais ele arriscava, mais ele errava", explicou durante sua autobiografia.
Virada contra Corretja na final de Roland Garros
Depois de seis vitórias seguidas, Guga chegava à final contra Alex Corretja. No histórico de confrontos entre eles, o espanhol venceu os dois primeiros, disputados ainda em 1998, mas depois o brasileiro venceria os sete duelos subsequentes. Antes daquela decisão de Roland Garros, já haviam acontecido seis encontros, e Guga tinha quatro vitórias seguidas sobre o rival. O catarinense de Florianópolis estava com 24 anos, enquanto seu adversário já tinha 27 e não repetia o mesmo desempenho que o levara à vice-liderança do ranking em 1999.
A final contra Corretja teve as duas primeiras parciais definidas nos detalhes. O espanhol venceu o set inicial no tiebreak, enquanto o segundo também permanecia equilibrado. Com o placar empatado por 5/5, Guga precisou salvar um break-point que poderia deixá-lo em situação delicada na partida. No game seguinte, conseguiu uma quebra de serviço para empatar a disputa. Depois disso, passou a controlar o jogo e atuou em altíssimo nível, brindando a torcida.
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"O jogo contra o Corretja foi enjoadinho. E o fato de eu ser o grande favorito me deixou mais tenso e ele aproveitou muito bem. Ele fez o dever de casa. E foi disparada a melhor partida que ele fez contra mim. É difícil você fazer seu melhor jogo na final, a tendência é o contrário, mas ele como franco-atirador fez o papel", afirmou Guga em sua entrevista coletiva. "Teve um momento no segundo set que foi gritante, que uma bolinha para cá ou para lá, me deixaria muito desconfortável. Mas tive esse ímpeto de saber que eu ia vencer e a consistência de, independente do placar, ia dar certo".
"Isso ia martelando na minha cabeça em tempo real e foi o que me levou. Até depois ganhar um 6/2, já tranquilo. Eu estava revendo o jogo com a minha filha e lembrei do game do 4/0. Em todos os pontos eu estava vibrando e falando: 'Vamos ganhar esse jogo!'. E depois eu pensei: 'Já posso relaxar'. Eu já estava me sentindo em casa, e aí eu flutuo nos braços das pessoas", acrescentou o ex-número 1 do mundo. "Aí eu pude fazer novamente o coração e reforçar essa paixão e essa emoção de tudo o que o torneio fez pela minha vida".
No depoimento a Luis Colombini para sua autobiografia Guga, um brasileiro (Sextante, 2014, p. 310), ele também falou sobre as sensações que teve em quadra na reta final da partida. "Venci o terceiro e o quarto sets jogando livre, leve e solto, com um tênis digno do número 1 do mundo. Dois sets na maior empolgação, fazendo o máximo para retribuir à plateia toda a demonstração de carinho e de apoio apaixonado que ela me dava. Numa nova catarse, passei quase uma hora jogando tênis como o cara mais feliz do mundo, só na alegria e no deleite, o que não é comum numa competição e menos ainda numa final de Grand Slam".
'Eu poderia ter cinco títulos!', diz Guga
Com uma carreira bastante comprometida por uma série de lesões e cirurgias no quadril, Guga ainda faria mais uma boa campanha em Paris no ano de 2004, quando derrotou Roger Federer e chegou até as quartas de final. Sua despedida das quadras se deu em 2008, aos 31 anos. Mas ele acredita que, se estivesse em plenas condições físicas, poderia ter vencido pelo menos mais duas edições.
"Dá para dizer que cinco títulos seria normal, seria uma coisa natural. Eu jogaria mais cinco anos como favorito, com certeza. Podia ganhar ou perder, mas mais uns dois teriam que vir. Dá para ver que a cada ano eu trazia uma solução diferente. Sempre que aparecia um cara novo, nós montávamos um plano e o Larri me incentivava. Traz um problema e a gente traz a solução. Uns dois trofeuzinhos do Nadal poderiam parar aqui. Mas depois ele ia me fazer pagar caro, comendo o saibro e correndo de um lado para o outro".